Simmba (2018)

Faço parte de uma categoria de fãs de cinema indiano que ama o entretenimento acima de tudo. Quando vemos um filme, queremos gritar, bater palmas, chorar e nos apaixonar, tudo ao mesmo tempo. Ranveer Singh em um filme masala era um sonho para nós, pois ele é o herói perfeito para isso: animado, espalhafatoso, divertido e, o mais importante: é alguém que também gosta do estilo, que se diverte com ele da mesma forma que o público. Não seria alguém fazendo isso apenas por dinheiro. Mas só ficaríamos satisfeitos se fosse masala de verdade, com muita ação, violência, comédia, dinanismo e musicais animados.  Que a oportunidade para o sonho tornar-se real tenha vindo com Rohit Shetty era sinal de um blockbuster certo a caminho, com o ator mais bem-sucedido do momento unindo-se ao diretor de maior sucesso comercial dos últimos anos. Portanto, sentei para ver Simmba com a maior disposição e alegria do mundo. 

O filme conta a história de Simmba (Ranveer Singh), um menino órfão que cresce vendo os policiais fazendo dinheiro através de propinas, decidindo desde cedo que esta será sua profissão. Já adulto e tendo seu sonho de infância realizado, Simmba é transferido para a delegacia de Miramar, sendo nomeado inspetor-chefe. Disposto a continuar se dando bem na vida, o policial corrupto logo trata de exigir mais dinheiro de Durva Yashwanth Ranade (Sonu Sood), grande bandido da região que compra policiais para atenderem aos seus interesses. Após uma animosidade inicial entre ambos, logo a relação é normalizada e Simmba atua de forma a proteger os interesses do criminoso, sempre a serviço de ganhar mais dinheiro e sem questionamentos morais que o perturbem. Tudo isso muda a partir de um evento trágico que muda sua vida e a forma como enxerga o mundo, levando-o a tentar corrigir seus erros - não sem a feroz oposição de Durva.

O início de Simmba é tão divertido quanto prometia ser. Ranveer está claramente tendo o grande momento da sua vida, podendo atuar de forma expansiva, caricata e gritada. A entrada do herói em cena nos masalas de ação é um momento especial e não me decepcionou: Ranveer persegue  e ataca bandidos em câmera lenta, cercado por inúmeros tecidos coloridos esvoaçando ao sabor do vento enquanto uma trilha de fundo grandiosa embala o momento. É o tipo de sequência que me faz sofrer por não conseguir assistir a tais filmes nos cinemas da mesma forma que o público da Índia e da diáspora conseguem, pois eles foram feitos para a experiência em grande escala que somente a sala de cinema permite. O pesar não foi reduzido logo depois, quando a música de introdução do herói começou trazendo diversão em escala ainda maior. Minha maior alegria na série Golmaal é ver o início do filme, que sempre traz o elenco principal em cima de carros em movimento anunciando o novo filme. Portanto, ver Ranveer também sendo introduzido chegando em cima de um carro em Aala Re Aala , cercado por dançarinas em sáris multicoloridos e fazendo uma coreografia absolutamente besta e divertida, foi um momento inestimável. Dancei, aplaudi e fiz parte daquela celebração coletiva o máximo que pude. Era um filme feliz e eu estava feliz junto com ele. Canções absolutamente chiclete como o divertido remix de Aankh Marey só somaram ao pacote, ainda mais trazendo meu querido elenco de Golmaal para dançar junto e claramente anunciando que um quinto filme vem por aí.

O clima de insanidade e diversão foi sustentado durante toda a primeira metade do filme, que foi toda gasta mostrando Simmba sendo totalmente inescrupuloso em suas funções policiais e o desgosto do policial honesto Nityanand Mohile (Ashutosh Rana) por ter como chefe um homem corrupto. O romance de Simmba com a bela Shagun (Sara Ali Khan) também é bastante explorado no começo. Realmente gosto de Sara Ali Khan e acompanho sua jovem carreira com carinho, mas aqui ela  não teve muito espaço para fazer nada além de ser bonita e divertida para os musicais - o que infelizmente já é esperado das heroínas em filmes masala. A única tarefa possível é ser carismática e Sara cumpriu muito bem o objetivo. Gostar dela é o que me faz lamentar esse desperdício, porém é compreensível que fazer parte de um blockbuster com um ator bem-sucedido seja um passo importante para manter-se relevante em uma indústria tão competitiva. O mesmo pode estar guiando Sonu Sood, pela enésima vez reprisando o papel de Dabangg e infelizmente entregando o vilão mais desinteressante de sua carreira. Talvez seja melhor estar em atividade e evidência do que nada.

Para quem se incomoda com spoilers, sugiro que interrompa a leitura a partir daqui. Minha lua-de-mel com o filme termina a partir do estupro de Aakruti (Vaidehi Parshurami), jovem estudante e professora com quem Simmba desenvolve uma relação fraternal. A utilização do estupro como ferramenta para motivar  ou transformar o herói é extremamente comum em filmes de ação indianos e infelizmente segue sendo utilizada aqui - um filme onde as mulheres praticamente não têm voz ou importância para o desenvolvimento da história. Como se não fosse suficiente, os roteiristas - todos homens, importante pontuar - chegaram ao ápice de culpabilizar mulheres por não criarem bem seus filhos, levando-os a tornarem-se estupradores. E sim, ainda piora. Estupradores são colocados como monstros que devem ser assassinados, não como produtos saudáveis de uma sociedade imersa na cultura do estupro, inclusive bastante reproduzida nos filmes que consumimos em Bollywood. Parece que ou você é um monstro estuprador ou não é, o que sabemos estar muito longe da realidade devido à maioria dos estupros infantis serem cometidos no ambiente intrafamiliar. Eram tantas ideias absurdas sendo apresentadas ao mesmo tempo que eu mal conseguia refletir sobre o que mais me incomodava enquanto assistia um diálogo mais absurdo e socialmente nocivo que o outro sendo reproduzido em sequência.


Além do péssimo manejo das questões de gênero, Simmba conseguiu chegar ainda mais longe (ou baixo?). Em tempos em que a brutalidade policial tem sido cada vez mais condenada e combatida, este filme celebrou o abuso de poder por parte da polícia, glorificando inclusive a produção de falsos crimes e provas para que a justiça seja feita da maneira que for possível. Neste momento eu já havia perdido a fala e não conseguia nem reagir mais. O filme já havia se tornado algo completamente irresponsável em níveis impossíveis de serem corrigidos. Eram muitas mensagens perigosas em um filme com uma plataforma de distribuição tão grande. Talvez este fosse o filme mais socialmente irresponsável que eu via desde Padmaavat, ambos com Ranveer Singh. Estou um pouco decepcionada com um ator que já fez tantas boas escolhas.

Simmba me deixou com um enorme desconforto e também me fez revisar minha própria história com filmes de ação da última década. Este filme era realmente tão pior que os outros ou eu que não tinha tanta informação antes? Será que não me lembrava de Chulbul Pandey em Dabangg sendo corrupto? O que deixei passar em tantos filmes que amo, o que não vi em Rowdy Rathore, Wanted ou Singham? Ou será que vi, mas não entendi a dimensão do que estava sendo transmitido? Questionamentos grandes e sérios demais para um filme que deveria ser divertido.

Mesmo gostando de ver Sara e sempre tendo prazer com a atuação de Ashutosh Rana e também com a de Ranveer, Simmba não me trouxe a felicidade que eu esperava. Em seu lugar ficou apenas a sensação de desconforto que provavelmente me acompanhará a partir de então em todos os filmes masalas de ação que eu assistir. Certamente não deixarei de gostar deles mesmo enxergando seus problemas, mas agora todas essas questões são mais importantes para mim. Quando fui assistir a este filme com tanta alegria e disposição, esqueci de uma coisa: o mundo mudou. E eu também. Espero que essas mudanças também cheguem ao gênero masala.

4 comments

  1. Anônimo14/9/20

    Menina, você traduziu bem o que eu senti assistindo e não consegui explicar. Minutos antes, estava morrendo de rir com eles dançando ao fazer a batida na festa. Quando ocorre esse estupro, o filme vira outra coisa. Desconforto é a palavra mesmo. Aquela cena da emboscada (ou "encontro", como eles falam) na delegacia me deixou... Nem sei. Minha cabeça fervilhava. E é uma coisa que tem em todo filme do Singham, mas eu percebia como algo fora da realidade, como aqueles filmes de Hollywood nos anos 80. Dessa vez foi diferente. Ainda estou tentando entender qual mensagem o filme quer transmitir. Que eles agem assim ou que deveriam agir assim? Será como foi a recepção lá?

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Aquela emboscada foi talvez a pior sequência de todas, parecia estar coroando o absurdo que já estava.

      Pelo que vi, a bilheteria foi enorme, mas os críticos caíram em cima.

      Excluir
  2. Anônimo14/9/20

    Continuando: assim como você, eu também fiquei "revisando minha história" com esse tipo de filme e comecei a me questionar sobre várias coisas. Como, por exemplo, "se a execução dos caras tivesse sido de outro jeito, eu teria ficado desconfortável?". Provavelmente não. "E o que isso significa?", sabe?

    Definitivamente, para bem ou para mal, é um filme que bota a gente pra pensar.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. E pensar sobre filme geralmente é fácil, mas fazer essa autocrítica toda é bem mais pesado. Espero que saiamos pessoas melhores disso, porque pelo menos o filme terá servido de algo.

      Excluir

Deixe um comentário e me conte o que achou!

Comentários ofensivos serão excluídos.