Dum Laga Ke Haisha (2015)


Os anos 90 foram coroados pela ostentação da riqueza em Bollywood. A época nos presenteou com musicais em mansões grandiosas, sáris caríssimos e viagens pela Europa, cenário que não mudou muito no início dos anos 2000. Na última década, entretanto, houve uma forte mudança nos padrões de histórias contadas na indústria, trazendo desta vez personagens mais acessíveis e parecidos com o público que os assiste, com a classe média indiana vendo a si mesma e seus desejos materiais nas figuras dos atores e atrizes. 

Ayushmann Khurana é um ator que parece vir se especializando nesse tipo de personagem simples e próximo de nós, reles mortais. Um dos seus filmes de maior sucesso foi Dum Laga Ke Haisha, em que interpreta Prem, jovem que ajuda o pai em sua loja de fitas cassete e que não apresenta grandes perspectivas de futuro por não ter conseguido terminar a escola. Sua família precisa aumentar a renda e para isso o obriga a entrar em um casamento arranjado com Sandhya (Bhumi Pednekar), jovem com os estudos completos e que poderá ajudar a família com seu salário de professora. Prem se casa completamente infeliz por não sentir atração pela noiva que é acima do peso. Todo esse cenário aumenta sua frustração por não ter um bom emprego ou uma bela esposa para mostrar aos amigos, levando a conflitos no casamento.


A forma excessivamente prática como a instituição do casamento é apresentada entra em conflito direto com a visão romantizada que a maioria dos filmes de Bollywood costuma nos mostrar. Aqui o casamento é visto principalmente em termos financeiros, mas não da forma dramática como é mostrado em filmes que criticam a cultura do dote, por exemplo. A noiva é escolhida para aumentar a renda da casa e também para dar um rumo à vida do filho. Os conflitos familiares da família de Prem mostram que se espera docilidade e trabalho duro de uma moça recém-casada, lugar que Sandhya recusa a assumir. Sheeba Chaddha está especialmente boa como a tia amargurada por seu casamento não ter dado certo e estar morando com o irmão. Suas trocas de palavras com a esposa do sobrinho são maldosas e gordofóbicas, cabendo à ela de forma bastante natural e não vilanesca a função de mostrar à Sandhya a real visão da família sobre seu corpo e suas funções naquele ambiente. Sanjay Mishra e Alka Amin estão bastante divertidos como os pais dramáticos e invasivos de Prem. O excesso de interferência nas vidas uns dos outros, incluindo até mesmo a vida sexual do filho, é um retrato leve e divertido do que talvez seja a família estendida real - e essa realidade parece bem menos amorosa e cor-de-rosa do que aprendemos nos filmes de Karan Johar. 


A gordofobia em relação à Sandhya é o principal tema do filme. Seu corpo é visto como algo feio e aversivo, sem nenhuma qualidade e anulando todo o resto da sua personalidade - Prem vê Sandhya como um corpo que despreza e nada mais. É neste ponto que a construção da personagem encanta, pois Sandhya ama a si mesma e tem orgulho tanto de sua beleza quanto de sua inteligência. Ela é a única que se vê como uma pessoa inteira e digna de respeito e amor, em nenhum momento aceitando a visão estreita e limitada de mulher que tentam lhe passar. Em breves cenas vemos que até mesmo seu irmão menor zomba de seu corpo, o que nos sinaliza que em uma possível história prévia da personagem veríamos que sua batalha pelo amor próprio teve início dentro de sua própria casa.  Para além de seu corpo, a jovem também tem que defender seu direito a ter educação formal, pois o fato de ser formada e mostrar qualquer conhecimento é colocado como manifestação de sua arrogância, especialmente por ser mais educada que toda a família do marido. Ela serve para a família por poder trabalhar graças ao seu diploma, mas esse mesmo diploma é usado contra ela. Sandhya é inteligente e forte, mas também é sexual e não hesita em fazer o que puder para ter uma vida de casada saudável. Bhumi Pednekar transmite as diversas facetas de sua personagem e a conduz desde a ilusão alegre do início do casamento até perceber a rejeição do marido e interesses de sua família com bastante sensibilidade e humor, de forma que a segurança de Sandhya não soe artificial ou panfletária. 

O Prem de Ayushmann inicialmente não me pareceu bem interpretado por não conseguir transmitir com clareza os sentimentos do personagem, porém ao longo do filme fica mais evidente que tal confusão é característica da falta de objetivos do rapaz. Ele vivencia uma frustração enraivecida que a todo momento é ativada pela esposa, que tem foco e muito mais força do que ele jamais teve e cuja presença o faz lembrar-se disso regularmente. A firme recusa de Sandhya em se invisibilizar para não ser motivo de vergonha para ele  reforça sua fraqueza e conforme a história progride e Prem começa a compreender o que deseja da vida, menos confusas parecem as emoções do personagem.

A construção do amor entre o casal é lenta e muito mais baseada no respeito mútuo e amizade que em alguma explosão romântica inesperada. A partir do momento em que não existe mais pressão para que fiquem juntos e cada um pode escolher seu próprio caminho, a falsidade e grosseria familiar vai sendo substituída por gentileza e sinceridade. A caminhada pelo romance é tão leve que não pesa sobre quem está assistindo. Em meio a todas as opiniões de familiares, eles criam seu próprio mundo de honestidade e carinho. Infelizmente essa fase é muito curta e não pudemos ver tanto da evidente química entre Bhumi e Ayushmann, mas o pouco que aparece nas eletrizantes cenas finais já vale muito a pena - quem não ficou gritando e batendo palmas com a adrenalina daquele momento inesquecível na história do cinema indiano, brilhantemente envolvido pela canção Dum Laga Ke Haisha?


Dum Laga Ke Haisha é uma jornada um pouco mais próxima da realidade do que o costume, mas com suficientes afeto e descontração para que a experiência de ver um filme comercial não seja perdida. A direção de arte contribuiu muito para ambientar a simplicidade da classe média indiana e cada detalhe simples de um pequeno quarto ou humilde cozinha chama tanta atenção quanto os cenários grandiosos de outros filmes. O coração desse filme está nas atuações brilhantes de todo o elenco, com destaque para Bhumi Pednekar, com uma estreia impressionante e sensível nos cinemas. É gostoso ver histórias sobre preconceitos reais em que as pessoas que sobrevivem em meio a tamanho ódio gratuito sejam mostradas também em sua força, coragem e inteligência. Fiquei triste quando o filme acabou por já sentir saudades dos personagens, como só ocorre nas boas histórias - e serei eternamente grata ao diretor Sharat Katariya e a todo o elenco por me sentir assim. É por esse tipo de transformação nas telas, mesmo que tímida, que cada vez amamos mais Bollywood. Agora o homem comum também é estrela.

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